sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A laicidade como princípio fundamental da liberdade espiritual e da igualdade

por
Henri Peña-Ruiz(*)

Alguns homens crêem em Deus. Outros não. A liberdade pressupõe o caráter facultativo da religião ou do ateísmo. Por isso se usará aqui o termo genérico «opção espiritual», que não favorece nem uma nem a outra versão da espiritualidade. A igualdade pressupõe a neutralidade confessional do Estado e das instituições públicas, para que todos, crentes e não crentes, possam ser tratados sem privilégio nem estigmatização. Assim se alcança a maior justiça no tratamento das diversas opções espirituais. A separação do Estado e de qualquer igreja não significa luta contra a religião, mas sim, simplesmente, vocação para a universalidade, e ao que é comum a todos os homens para lá das suas diferenças. As diferenças não são negadas, mas podem sim viver-se e assumir-se livremente na esfera privada, quer se expresse a nível individual ou a nível coletivo (a confusão entre dimensão coletiva e caráter juridicamente público é um sofisma, pois confunde o que é comum a certos homens e o que é de todos).
Liberdade, igualdade, universalidade e por fim autonomia de juízo de cada cidadão, fundada na instrução laica: tais são os valores e os princípios essenciais da laicidade. Assim se responde claramente às perguntas básicas da filosofia política. Como unir os diversos crentes e os ateus sem que nenhum seja favorecido ou desprezado devido à sua opção espiritual? E quais as consequências para o sistema escolar? Estas duas perguntas servirão de fio condutor para recordar o sentido e o valor do ideal de laicidade, tratando de repelir alguns mal-entendidos que turvam a sua compreensão. Antes de tudo devem precisar-se aqui questões de terminologia, pois as palavras não são inocentes. Trata-se de saber se é preferível falar de liberdade religiosa ou de liberdade espiritual. Qual é o conceito mais adequado? O de liberdade religiosa parece ambíguo. Seria melhor falar de liberdade de ter ou não ter uma religião, e de expressar livremente essa opção espiritual. Pois a liberdade não é em si mesma religiosa ou ateia: é a faculdade de escolher sem coação uma determinada versão da espiritualidade. Por isso é mais adequado falar de liberdade espiritual. Essa liberdade espiritual faz parte da esfera privada, ou seja, juridicamente independente e livre de toda a intervenção do poder temporal. Privado não se confunde com individual, já que inclui a dimensão coletiva das associações religiosas ou filosóficas formadas por pessoas que escolhem a mesma opção espiritual. Portanto não se pode admitir o sofisma antilaico dos que reclamam um reconhecimento público das religiões, no plano jurídico, com o pretexto do seu caráter coletivo.
A liberdade consiste na possibilidade de escolher as referências espirituais, o que implica dispor delas, e não ser, em princípio, por elas totalmente condicionado. A partir deste ponto de vista, a escola laica deve diversificar as referências ao mesmo tempo que as estuda com distância: não se trata de destruir um ambiente espiritual familiar, mas sim de alargar os horizontes.
Princípios: o ideal de laicidade
Conceber um Estado laico, é fundamentar a lei sobre o que é comum a todos os homens, ou seja, o interesse comum. O laos, em grego, é o povo na sua unidade, sem privilégios de alguns sobre os demais. O que exclui qualquer dominação fundada num credo imposto a todos por alguns. Pode chamar-se clericalismo à tendência para estabelecer um poder temporal, com dominação da esfera pública, com o pretexto da dimensão coletiva da religião. O «anticlericalismo» atribuído à laicidade não permite defini-la, pois é somente uma consequência negativa do princípio positivo que constitui a sua essência: unir a todos pelo que ultrapassa cada um deles: a liberdade e a autonomia de juízo que a fortalece. Se um clero se opõe concretamente a tal exigência, o anticlericalismo é apenas a resposta a tal oposição. Em caso algum se deve confundir laicidade com hostilidade à religião.
A laicidade é a devolução da potência pública a todos, sem distinção. Repousa sobre dois princípios essenciais: liberdade radical de consciência, e igualdade, em todos os pontos de vista, dos cidadãos: jurídica, simbólica e espiritual. A República laica é de todos, e não apenas dos crentes ou dos ateus. Por isso deve ser confessionalmente neutra. Por isso também não se afirma no mesmo plano do que as diversas opções espirituais, pois é o que permite fundamentar a sua justa coexistência. Neste aspecto, a laicidade transcende as diversas opções espirituais, recordando aos homens que a humanidade é una, antes de dividir-se em crenças. Assim, é também um princípio de fraternidade.
Deve notar-se que esta neutralidade não significa que o Estado laico esteja vazio de valores, pois assenta numa escolha ético-filosófica de princípios. Fundados nos direitos mais universais do ser humano, liberdade e igualdade, permitem uma união verdadeira que não impede as diferenças, mas sim que organiza a convivência fraterna entre os homens, capazes de as viverem com distância suficiente para não serem por elas alienados. A laicidade promove o que une os homens antes de valorizar o que os divide.
Este tipo de fundamentação já não privilegia um particularismo, e por isso mesmo permite que convivam num quadro jurídico comum os particularismos, proporcionando um espaço de diálogo mas também valores e linguagem comuns que inscrevem qualquer debate num ambiente e num horizonte de autêntica intercompreensão. O perigo não é a expressão das diferenças, mas sim a alienação pela diferença, pois esta pode resultar numa masmorra onde se esquece a humanidade dos outros.
Também não se pode reduzir o Estado laico a um mero quadro jurídico, pois deve promover o que fortalece em cada futuro cidadão a liberdade de consciência. Esta não é apenas a independência face a todo o tipo de tutela, mas sim mais radical e positivamente a autonomia, ou seja a faculdade de dar-se a si mesmo os seus pensamentos e as suas leis (recordemos o texto de Kant: «O que é o iluminismo?»). Tal faculdade corresponde ao nível individual à soberania democrática do nível coletivo.
A autonomia constroi-se numa escola laica, o que não significa anti-religiosa, mas, simplesmente, livre de todo o grupo de pressão («lóbi»), quer seja religioso, ideológico, ou econômico. Os objetivos desta escola, vê-lo-emos, são cultivar o gosto pela verdade e pela justiça, e um racionalismo crítico que não se deve reduzir a um cienticismo cego aos sentimentos. Lucidez face a toda a captação ideológica, usando da suspeição crítica, mas não um relativismo cego, que deixe os homens sem motivos para resistir ou admirar.
Laicidade não significa um relativismo que com o pretexto da tolerância tudo admite e tudo considera igual. Entre o racismo e o reconhecimento da igual dignidade de todos os povos, não há tolerância que valha: há que escolher o seu campo, o que já se chamou mais acima «escolha ético-filosófica». Poderia dizer-se que a neutralidade do Estado laico ao nível das opções espirituais tem por base esta escolha.
República laica e religiões
A laicidade não é hostilidade à religião como opção espiritual particular, mas sim a afirmação de um Estado de caráter universal, no qual todos se possam reconhecer (na França, a alegoria da República, Marianne). É incompatível com qualquer privilégio temporal ou espiritual conferido a uma opção religiosa particular, quer seja religiosa ou ateia. A polêmica contra o laicismo dos partidários de um privilégio público das religiões assenta frequentemente na má fé. Deve-se à confusão entre hostilidade à religião enquanto postura espiritual, e rejeição do clericalismo enquanto vontade de dominação temporal. Atribui ao ideal laico o que não é dele. Este ideal é positivo, e não reativo: cuida e põe em destaque o que é comum a todos os homens, para lá das suas diferenças. E por isso conduz à rejeição do clericalismo, mas não da religião.
Na França, marcada por guerras de religião e por uma dominação clerical muito forte de uma religião, a lei de 1905 de separação do Estado e das igrejas foi acolhida como uma verdadeira libertação, e um progresso autêntico da igualdade, tanto para as religiões dominadas como para os livres pensadores. Alguns políticos que levaram a cabo esta separação eram eles próprios crentes, mas não confundiam a dominação temporal com a postura espiritual. Deve notar-se que nos países anglo-saxônicos, os católicos, dominados pelos protestantes, são favoráveis à laicidade e os protestantes não: situação contrária à dos países sob dominação católica onde muitos protestantes lhe são favoráveis… Deve meditar-se nesta observação.
Finalmente, não é paradoxal o fato evidente de que é nos países laicos que as religiões são mais livres, desfrutando simultaneamente da igualdade de estatuto e da liberdade de desenvolvimento com a única condição de que respeitem, como o farão também as espiritualidades de inspiração ateia, a neutralidade confessional da esfera pública, garantia de que desempenhará o seu papel próprio de cuidar do bem comum, ou seja o que une a todos, e não apenas a alguns.

(*)Filósofo, «maître de conférences» no Institut d’études politiques de Paris.
Tradução de Ricardo Alves a partir do original castelhano «La laicidad como principio fundamental de libertad espiritual y de igualdad» (conferência dada em Madrid em 18 de Novembro de 2000).

Nota: Adaptado ao português brasileiro por Néventon Vargas em 26/08/2010.

Um comentário:

  1. Caro Néventon.
    Parabéns pelo Blog. Achei o texto excelente! Claro e preciso, o autor estabelece o âmbito do diálogo autêntico de intercompreensão,como diz o autor. O espaço da fraternidade, da alteridade, da liberdade com responsabilidade. Além disso, a sua proposta de suspeição crítica, não descamba para o relativismo ilimitado,que retire dos homens a motivação "para resistir ou admirar". Combate o clericalismo, mas não a religião; exalta o laicismo mas não contra a religião.Com muita lucidez destaca o que, para mim, é a virtude maior da laicidade: "A laicidade promove o que une os homens antes de valorizar o que os divide".
    Um abraço, amigo.
    Homero.

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